segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Línguas Ferinas

Você já deve ter presenciado mas, se não, imagine a cena: duas estrangeiras, uma vendedora a outra turista. A primeira fala bem alto, pausadamente, como se isso pudesse diminuir as diferenças entre os dois idiomas.
- Que ta-ma-nho? - Fala, apontando para o próprio corpo, desgrudando a blusa da pele, esticando o tecido como se isso pudesse descrever o significado de tamanho.
A cliente, um pouco atônita, meio sem graça, olha para os lados em busca de socorro.
A vendedora insiste.
- Pe-que-na. A-ma-re-la?
De onde será que surgiu a idéia absurda de que falar alto e devagar, marcando bem cada silaba possa ajudar a traduzir uma palavra de uma língua para outra ?
Agora, imagine uma cena ainda mais bizarra: Eu, cadeirante, escoltada por duas enfermeiras, entro em uma loja interessada por algumas peças da vitrine.
Mas então o que faz a vendedora?
Olhando das enfermeiras para mim, com a mesma expressão de quem olha para uma criança perdida na praia, sorriso simpático caloroso,ela fala:
- Pos-so te a-ju-dar?
E voltando-se para as enfermeiras, em tom normal pergunta:
- Do que ela está precisando?
Tenho vontade de interromper gritando:
- Preciso que não me tratem como deficiente mental, mas como deficiente física. Não estou surda, só paralisada.
Mas na loja de copos foi ainda pior.
Loja linda, bem montada, copos de todos os tipos, tamanhos e cores, lisos ou decorados, simples ou sofisticados. Enfim, para todos os gostos.
A única cliente na loja sou eu, sinto-me a vontade para pedir que a vendedora separe vários modelos, alguns coloridos, como os próprios amarelos que acabei comprando. Ainda separei copos pequenos para o dia a dia das crianças e algumas taças avulsas para completar um jogo mais antigo.
Durante o atendimento, apesar de todos os esforços, a vendedora, é claro, alegando não conseguir me entender esperava que minhas acompanhantes repetissem frase por frase cada pedido meu.
Tudo bem, o dia estava lindo, a loja ensolarada e eu, debaixo de meus óculos escuros aproveitava o dia de passeio. Resolvi que não iria mais me estressar com esse tipo de coisa.
Peço para fecharem minha conta e por culpa de alguns degraus mal posicionados quem se dirige até o caixa para pagar é Creuza, uma de minhas enfermeiras.
Logo percebo que lá o assunto sou eu. Acho natural este tipo de curiosidade e quando me perguntam realmente não me importo de responder nem de explicar. Acho natural e importante falar abertamente sobre qualquer assunto, pois só através da informação e do conhecimento podemos acabar com o preconceito.
Vendedora e gerente vem nos encontrar na porta para se despedir. Agradeço toda atenção e vamos embora.
No carro, Creuza começa a contar que tipo de perguntas haviam feito as vendedoras, se eu era casada, se tinha filhos, hà quanto tempo estava doente, se iria ficar boa logo, se compreendia tudo, até chegarem à perola das perolas, e então entre gargalhadas Creuza imita a voz da vendedora perguntando:
- Mas afinal, ela enxerga?
Ficamos todos mudos no carro.
Como assim, “ela enxerga“? É claro que eu enxergo, senão como poderia ter escolhido os copos entre tantos modelos e cores?
O motorista balança a cabeça incrédulo, e Binha, a outra enfermeira, começa a rir de mansinho até que todos no carro caímos numa gargalhada histérica daquelas que arrancam lagrimas dos olhos.
Gostaria de saber até que ponto línguas ferinas podem chegar. São elas que envenenam os pensamentos com preconceitos ou são as mentes preconceituosas que transformam nossa língua em presas venenosas?
aproveitando a oportunidade, este recado também é para vocês, tias queridas portadora de línguas mordazes, que ao me ver sempre soltam perolas do tipo:
- Quem será que escolhe as roupas que ela veste?
Ou ainda, ao me encontrar no auge da festa, hora em que ela já deveria estar na cama, pergunta-me, com a mãozinha acariciando meu rosto, se estou bem, se estou melhor, como vou indo, e antes que possa ouvir qualquer resposta, olha para as enfermeiras enquanto me da tapinhas na bochecha e sentencia:
- Acho que ela não sabe mais quem sou...
Agradeço ao DJ por ter aumentado o som bem naquela hora, pois assim, ninguém pôde ouvir para onde mandei todo esse povinho com seus comentários preconceituosos.

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