A primeira fatia do bolo
Sumi né gente? Andei meio desaparecida até de mim mesma!
Iniciei uma nova fase de tratamentos e fisioterapia que me consumiram demais logo no começo. Mas já estou de volta a rotina. Como vocês sabem, o tempo não pára. E também não deixa nada parar. Portanto, dezenas de textos foram se acumulando, então temos muito trabalho pela frente. Como sempre, espero pelos comentários, observações e opiniões. Quero também iniciar o espaço para debates. A seguir, meu mais novo texto.
O e-mail convidando para o aniversario do amigo Rubinho chegara uma semana antes e já se mostrara simpático e espirituoso, exigindo, alem de nossa presença, a presença das enfermeiras que sempre nos acompanham.
É isso aí! Amigo de verdade é assim: Topa qualquer parada.
E nossos amigos são o máximo, não se importam de desarrumar toda a distribuição de móveis da sala de estar só para acomodar a jamanta que é uma cadeira de rodas.
Não me dão nem tempo de escolher o que vou comer, a cada minuto alguém aparece com alguma coisinha para eu provar... E as enfermeiras, então, apesar da presença imposta por nossa visita são tratadas como amigas, como convidadas, recebendo as mesmas gentilezas que os bons anfitriões sabem utilizar para que todos se sintam confortáveis e a vontade.
É isso aí! Amigos de verdade, além de nos agüentar ainda nos ajudam a carregar toda nossa tralha.
Amigos, mas amigos mesmo sabem quando precisam nos animar, mesmo quando não falamos nada.
Amigos sinceros sabem perguntar sem parecer inoportunos, sabem questionar sem aparentar curiosidade, sabem se mostrar interessados, sempre prontos para ouvir as novidades, somando suas esperanças às nossas.
Mas a história afinal é outra. Tudo isso foi só pra contar a dificuldade que foi sair de casa ontem.
Como pode ser que meia dúzia de itens tão automáticos e rotineiros transformem tudo em tamanho caos?
A roupa escolhida para sair, é claro, ficou apertada. Mas beeeeeem apertada. Meu Deus, penso eu, de onde é que vieram esses quilos todos?
Minha respiração já começa a se alterar. A enfermeira, já acostumada a meus súbitos ataques, senta-se desanimada na beirada da cama.
Calças e mais calças depois, amontoadas sobre a cama, insistindo em cair sobre as blusas, casacos e lenços espalhados por todos os lados, finalmente escolho uma combinação que me agrada.
A está altura já estou completamente atrasada, meu marido já bateu na porta do quarto uma dezena de vezes me apressando e eu já menti outra dezena de vezes:
- Já estou quase pronta!
- Santo Deus, peço angustiada, me ajude.
Então começo um festival de solicitações desenfreadas para os dois anjos que me acompanham:
- Creuza, pega o colar e os brincos pretos de cristal... Já pegou minha bolsa? Aquela pequena com os metais dourados... E a pashimina! Não vai esquecer!... Vai logo, Creuza, vai logo... digo, apressando a pobre infeliz a ganhar uma corrida que não é dela.
Sandalias ou sapatos? Resolvo experimentar todos. Enquanto isso Creuza me apressa: vai logo Lúcia, seu marido vai ter um ataque!
Finalmente decido, nem sandálias nem sapatos, vou mesmo é de botas.
- Bom, Creuzinha, agora é só passar um perfuminho e podemos ir embora. -É mesmo, boneca? Olha aqui, olha, e me estende um espelho de mão para o qual me viro imediatamente. E no mesmo instante solto um grito enlouquecido e falo, com uma expressão desvairada no rosto:
- Creuza, a maquiagem...e quase começo a chorar quando me vejo de cara lavada, ainda de touca, com o cabelo rebelde tentando escapar por todos os lados, fugindo daquele ridículo plástico verde!!!
Rafael, o marido esquecido na sala, de repente está parado no meio do quarto. Quando me viro e nossos olhares se encontram, ao invés de um sorriso compreensivo, o que vejo é quase uma caricatura do que seria um cara de bravo: olhos apertados e semi cerrados, as narinas abertas como um touro bufando furioso, e a boca então, fechada, esmagando os lábios um contra o outro, transformando o rosto todo numa máscara destinada a apavorar pelo medo.
A voz, gelada, me diz com estas poucas palavras:
- Espero vocês no carro.
Para resumir, apesar dos esforços de Creuza, a maquiagem ficou uma droga, quase morri de calor com a roupa escolhida, meus dedos ficaram massacrados dentro das botas, encolhidos pelas meias de lã muito grossas.
Justamente na hora de sair nossos filhos vão aparecendo, cada um com seu pedido: carona, dinheiro, dar o nó na gravata, dinheiro, mais dinheiro, ensinar o melhor caminho para o raio de um bairro do qual nunca ouvimos falar...
Pedidos básicos, perfeitos para ser feitos de última hora, além, é claro de solicitações mais especificas, como pegar emprestada minha melhor bolsa preta para noite, minha blusa de seda novinha em folha que ainda não estreei, até minha carteira já chegou ao cúmulo de ir passear sem me avisar, deixando meus documentos, dinheiro (o que sobrou, evidente), cartões, tudo amontoado num cantinho do armário, abandonados ali por um motivo justíssimo tenho certeza! Afinal, usar uma carteira diferente é imprescindível, - Mas mãe, você não entende? Minha carteira era de tactel e ainda por cima, cheia de adesivos do Pokémon.
De repente, uma voz troveja:
- É pra hoje, Lucia Helena?
Então me dou conta do avançado da hora. E o pior ainda nem começara.
Faltava ainda entrar no carro, ajustar o corpo, reorganizar a roupa espremida dentro do cinto de segurança, desmontar a cadeira de rodas, guardar a mala com todos os aparelhos que somos obrigados a carregar, posicionar a cabeça e ajustá-la de encontro às mãos da enfermeira, que deve estar o tempo todo atenta para impedir qualquer movimento brusco que possa machucar o pescoço, ufa!!!!!!
Na volta a rotina será exatamente igual, porém, regada com algumas doses de vinho.
Enfim, lar doce lar, chegamos à casa da feliz família Ferraz do Amaral.
A esta altura meu corpo já dói, minha cabeça pesa meia tonelada, a roupa já não se encaixa mais tão bem, e o rosto, já dando sinais de suor, mostra uma pele brilhante e avermelhada que não combina com as cores da maquiagem feita com tanto capricho.
Mas, e que bom que existe sempre um “mas”... Quando acreditamos que a vida é maravilhosa e a justiça é divina, recebemos os melhores e mais inesperados presentes.
Foi na hora do parabéns, aquela hora especial, a sala na penumbra, as velas, quase mágicas, brilhando e dançando enquanto todos cantam e gritam, sintonizados na alegria e felicidade, na mesma emoção.
Foi aí que aconteceu.
O aniversariante, cercado pela mulher e pela neta Gabi, a doce e suave fada Gabi, depois das palmas e cumprimentos, sorrisos, brincadeiras e discursos cortou, então, o primeiro pedaço de bolo, perguntando à pequena, que já escorregava por seus braços posicionando-se a sua frente:
- E aí, Gabi, para quem vai o primeiro pedaço de bolo?
E nesse momento, a mágica aconteceu. Seus olhinhos brilhantes encontraram os meus e sua voz delicada com firmeza decretou:
- É pra ela.
E apontando para mim, completou:
- É pra tia Lu.
E do alto de sua infância me sorria, como se soubesse de tudo...
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Iniciei uma nova fase de tratamentos e fisioterapia que me consumiram demais logo no começo. Mas já estou de volta a rotina. Como vocês sabem, o tempo não pára. E também não deixa nada parar. Portanto, dezenas de textos foram se acumulando, então temos muito trabalho pela frente. Como sempre, espero pelos comentários, observações e opiniões. Quero também iniciar o espaço para debates. A seguir, meu mais novo texto.
O e-mail convidando para o aniversario do amigo Rubinho chegara uma semana antes e já se mostrara simpático e espirituoso, exigindo, alem de nossa presença, a presença das enfermeiras que sempre nos acompanham.
É isso aí! Amigo de verdade é assim: Topa qualquer parada.
E nossos amigos são o máximo, não se importam de desarrumar toda a distribuição de móveis da sala de estar só para acomodar a jamanta que é uma cadeira de rodas.
Não me dão nem tempo de escolher o que vou comer, a cada minuto alguém aparece com alguma coisinha para eu provar... E as enfermeiras, então, apesar da presença imposta por nossa visita são tratadas como amigas, como convidadas, recebendo as mesmas gentilezas que os bons anfitriões sabem utilizar para que todos se sintam confortáveis e a vontade.
É isso aí! Amigos de verdade, além de nos agüentar ainda nos ajudam a carregar toda nossa tralha.
Amigos, mas amigos mesmo sabem quando precisam nos animar, mesmo quando não falamos nada.
Amigos sinceros sabem perguntar sem parecer inoportunos, sabem questionar sem aparentar curiosidade, sabem se mostrar interessados, sempre prontos para ouvir as novidades, somando suas esperanças às nossas.
Mas a história afinal é outra. Tudo isso foi só pra contar a dificuldade que foi sair de casa ontem.
Como pode ser que meia dúzia de itens tão automáticos e rotineiros transformem tudo em tamanho caos?
A roupa escolhida para sair, é claro, ficou apertada. Mas beeeeeem apertada. Meu Deus, penso eu, de onde é que vieram esses quilos todos?
Minha respiração já começa a se alterar. A enfermeira, já acostumada a meus súbitos ataques, senta-se desanimada na beirada da cama.
Calças e mais calças depois, amontoadas sobre a cama, insistindo em cair sobre as blusas, casacos e lenços espalhados por todos os lados, finalmente escolho uma combinação que me agrada.
A está altura já estou completamente atrasada, meu marido já bateu na porta do quarto uma dezena de vezes me apressando e eu já menti outra dezena de vezes:
- Já estou quase pronta!
- Santo Deus, peço angustiada, me ajude.
Então começo um festival de solicitações desenfreadas para os dois anjos que me acompanham:
- Creuza, pega o colar e os brincos pretos de cristal... Já pegou minha bolsa? Aquela pequena com os metais dourados... E a pashimina! Não vai esquecer!... Vai logo, Creuza, vai logo... digo, apressando a pobre infeliz a ganhar uma corrida que não é dela.
Sandalias ou sapatos? Resolvo experimentar todos. Enquanto isso Creuza me apressa: vai logo Lúcia, seu marido vai ter um ataque!
Finalmente decido, nem sandálias nem sapatos, vou mesmo é de botas.
- Bom, Creuzinha, agora é só passar um perfuminho e podemos ir embora. -É mesmo, boneca? Olha aqui, olha, e me estende um espelho de mão para o qual me viro imediatamente. E no mesmo instante solto um grito enlouquecido e falo, com uma expressão desvairada no rosto:
- Creuza, a maquiagem...e quase começo a chorar quando me vejo de cara lavada, ainda de touca, com o cabelo rebelde tentando escapar por todos os lados, fugindo daquele ridículo plástico verde!!!
Rafael, o marido esquecido na sala, de repente está parado no meio do quarto. Quando me viro e nossos olhares se encontram, ao invés de um sorriso compreensivo, o que vejo é quase uma caricatura do que seria um cara de bravo: olhos apertados e semi cerrados, as narinas abertas como um touro bufando furioso, e a boca então, fechada, esmagando os lábios um contra o outro, transformando o rosto todo numa máscara destinada a apavorar pelo medo.
A voz, gelada, me diz com estas poucas palavras:
- Espero vocês no carro.
Para resumir, apesar dos esforços de Creuza, a maquiagem ficou uma droga, quase morri de calor com a roupa escolhida, meus dedos ficaram massacrados dentro das botas, encolhidos pelas meias de lã muito grossas.
Justamente na hora de sair nossos filhos vão aparecendo, cada um com seu pedido: carona, dinheiro, dar o nó na gravata, dinheiro, mais dinheiro, ensinar o melhor caminho para o raio de um bairro do qual nunca ouvimos falar...
Pedidos básicos, perfeitos para ser feitos de última hora, além, é claro de solicitações mais especificas, como pegar emprestada minha melhor bolsa preta para noite, minha blusa de seda novinha em folha que ainda não estreei, até minha carteira já chegou ao cúmulo de ir passear sem me avisar, deixando meus documentos, dinheiro (o que sobrou, evidente), cartões, tudo amontoado num cantinho do armário, abandonados ali por um motivo justíssimo tenho certeza! Afinal, usar uma carteira diferente é imprescindível, - Mas mãe, você não entende? Minha carteira era de tactel e ainda por cima, cheia de adesivos do Pokémon.
De repente, uma voz troveja:
- É pra hoje, Lucia Helena?
Então me dou conta do avançado da hora. E o pior ainda nem começara.
Faltava ainda entrar no carro, ajustar o corpo, reorganizar a roupa espremida dentro do cinto de segurança, desmontar a cadeira de rodas, guardar a mala com todos os aparelhos que somos obrigados a carregar, posicionar a cabeça e ajustá-la de encontro às mãos da enfermeira, que deve estar o tempo todo atenta para impedir qualquer movimento brusco que possa machucar o pescoço, ufa!!!!!!
Na volta a rotina será exatamente igual, porém, regada com algumas doses de vinho.
Enfim, lar doce lar, chegamos à casa da feliz família Ferraz do Amaral.
A esta altura meu corpo já dói, minha cabeça pesa meia tonelada, a roupa já não se encaixa mais tão bem, e o rosto, já dando sinais de suor, mostra uma pele brilhante e avermelhada que não combina com as cores da maquiagem feita com tanto capricho.
Mas, e que bom que existe sempre um “mas”... Quando acreditamos que a vida é maravilhosa e a justiça é divina, recebemos os melhores e mais inesperados presentes.
Foi na hora do parabéns, aquela hora especial, a sala na penumbra, as velas, quase mágicas, brilhando e dançando enquanto todos cantam e gritam, sintonizados na alegria e felicidade, na mesma emoção.
Foi aí que aconteceu.
O aniversariante, cercado pela mulher e pela neta Gabi, a doce e suave fada Gabi, depois das palmas e cumprimentos, sorrisos, brincadeiras e discursos cortou, então, o primeiro pedaço de bolo, perguntando à pequena, que já escorregava por seus braços posicionando-se a sua frente:
- E aí, Gabi, para quem vai o primeiro pedaço de bolo?
E nesse momento, a mágica aconteceu. Seus olhinhos brilhantes encontraram os meus e sua voz delicada com firmeza decretou:
- É pra ela.
E apontando para mim, completou:
- É pra tia Lu.
E do alto de sua infância me sorria, como se soubesse de tudo...